Brincar: experiências criativas transformadoras

25 de abril de 2019

“O brincar abre para a criança múltiplas janelas de interpretação, compreensão e ação sobre a realidade. Nele, as coisas podem ser outras, o mundo vira do avesso, de ponta-cabeça, permitindo à criança se descolar da realidade imediata e transitar por outros tempos e lugares, inventar e realizar ações/interações com a ajuda de gestos, expressões e palavras, ser autora de suas histórias e ser outros, muitos outros: pai, mãe, cavaleiro, bruxo, fada, príncipe, sapo, cachorro, trem, condutor, guerreiro, super-herói…”  (BORBA, 2007)

Os benefícios da brincadeira

A partir das brincadeiras, as crianças conhecem o mundo, se conectam com novas perspectivas, reconhecem os limites, despertam a criatividade, se aproximam do outro e compreendem melhor a maneira de lidar com diferentes situações. Muito importante para o desenvolvimento infantil, na brincadeira a criança cria, inventa, produz, imagina, desenvolve a sua autonomia e alarga os seus repertórios enriquecendo e acionando o seu olhar para o outro e sua responsabilidade com o grupo. A brincadeira é o encontro de todas as artes, é experiência criativa que favorece a descoberta do eu e dos outros (MOURA, 2009).

Confiança, imaginação e autonomia

A criança, ao brincar, desenvolve confiança e fortalece seu vínculo com o outro, relaciona-se de corpo inteiro e se abre para novas experiências. As crianças vão se constituindo como autoras, organizando com autonomia as suas ações e interações, formulando regras de convivência social e participação nas brincadeiras (BORBA, 2007). Além disso, brincar é uma atividade que impulsiona o desenvolvimento, pois faz com que elas exerçam papéis e funções que mobilizam novos conhecimentos e processos de aprendizagem. O processo de imaginação também constitui o brincar e possui grande relevância na formação das crianças. (VYGOTSKY, 1987)

Desenvolvimento criativo pelo lúdico

Outro autor que discorre sobre o tema é Winnicott, pediatra e psicanalista inglês que teve grande contribuição para os estudos sobre o brincar, as interações da criança com o mundo externo e a relação entre mãe e bebê. Segundo ele (1975), por intermédio da riqueza das brincadeiras, as crianças ampliam a sua capacidade de criar, pois elas funcionam como um elo entre a relação do indivíduo com a realidade interior e também com a realidade externa ou compartilhada.

O autor, ainda, afirma que a brincadeira é universal e é própria da saúde. No brincar livre há a manifestação criativa, a capacidade exploratória inventiva e espontânea. Entretanto, se o brincar não puder ser exercido com liberdade se perde a função criadora e, muitas vezes, coloca a criança em uma posição defensiva, sem reivindicações, em que a criança é governada por desejos de fora e não pelos seus próprios desejos, prejudicando, assim, a sua criatividade. Viver criativamente constitui um estado saudável e desenvolve a autonomia.  

A importância do brincar na educação infantil

Refletindo sobre as questões colocadas por estes autores e a partir das experiências de observação das brincadeiras das crianças, podemos perceber o quanto o brincar tem importância na escola. O brincar livre, sem ser direcionado pelo adulto, permite com que a criança invente a sua própria forma de brincar e se sinta confiante, apresentando potência e segurança nas suas relações. Importante dizer que brincar não é apenas uma atividade para as crianças, os adultos podem brincar junto e partilhar esses momentos com seus filhos. Ser parceiro nos eventos de imaginação e criação e respeitar suas regras e lógicas permite um espaço de aproximação entre adulto e criança. O brincar de forma coletiva envolve uma grande riqueza nas interações e faz com que as relações de afeto entre adulto e criança se intensifiquem fortalecendo a sua confiança e o vínculo entre os envolvidos neste processo.

Crianças também aprendem brincando

É uma atividade que amplia as possibilidades de aprendizagem e trabalha a compreensão de cada função naquela brincadeira e sua relação com a cultura. Contribui para a sociabilidade, além da satisfação nas imitações e repetições presentes na brincadeira infantil. Esta troca é repleta de aprendizado e de sensibilidade além de possibilitar uma rede de significados que as crianças vão tecendo, pouco a pouco. As interações são relevantes no cotidiano das crianças, elas aprendem através da afetividade, do movimento, da cognição, enfim, através das diversas maneiras de relacionar-se.

Observar as interações das crianças se torna fundamental para analisarmos o espaço da brincadeira como local privilegiado de encontro, criação e aprendizagem. Portanto, segue o relato de uma cena observada em uma pesquisa de campo realizada em maio de 2015 com crianças de 3 anos, em uma escola no Rio de Janeiro, para ilustrar esses momentos de pura criação, partilha, interação e desenvolvimento da autonomia:

Fomos andando da sala até o pátio e no início deste percurso, Clarice se aproximou de mim.

Pesquisadora – Oi Clarice, tudo bem?

Clarice – Tudo! Olha, esse é o mapa do tesouro. Leva para uma caverna de brilhantes e com cabeças de monstros.

Pesquisadora – Nossa! E você vai atrás dessa caverna agora?

Clarice – Sim! Ela fica aqui na escola. E tem muitas cabeças de monstros!

Pesquisadora – E você não tem medo desses monstros não?

Clarice – Não! Eu sou uma aventureira!

No trajeto entre a sala e o pátio Clarice foi olhando o mapa.

Clarice – Estamos no caminho certo!

Assim que chegamos ao pátio, Clarice começou a olhar em volta:

Clarice – Ali é a caverna! (apontando para um tubo de brinquedo de concreto, bem grande).

Pesquisadora – Já descobriu o lugar do tesouro?

Clarice – Sim! É aqui que ficam os monstros!

Neste momento, algumas crianças se juntam e começam a participar da brincadeira olhando para o mapa de Clarice.

Clarice – Peguem suas espadas! (Clarice fala antes de entrar no tubo) Puxa a alavanca para abrir a porta! (Ela fala isso olhando para mim e eu começo a rodar devagar o braço simulando uma alavanca).

Foi quando a Vitoria viu a cena e disse:

Vitoria – Não é assim, olha como faz! (olhou para mim e, mostrando como se faz, rodou muito rápido o braço para abrir logo a porta da caverna)

Nesse momento, Gabriela entra na brincadeira, dá um grito e aponta para a direção de Gustavo:

Gabriela – Olha o Jacaré! (olho para a direção em que Gabi está apontando e vejo Gustavo com um fantoche de jacaré na mão).

Nessa hora, Clarice sai do tubo e se junta às outras crianças nos bancos dizendo que estava com medo.

O jacaré foi se aproximando e praticamente a turma toda se juntou no canto, perto dos bancos, rindo da brincadeira e dizendo que estavam com medo do jacaré. Ele foi ficando cada vez mais perto e ao chegar ao lado de Clarice, mordeu a blusa dela.

Gustavo – Ele come roupa! Eu deixo ele comer o meu casaco!

E em vários momentos o jacaré vinha, provocava medo nas crianças, e se afastava.

Crianças – Sai jacaré!

Gustavo – Ele não vai sair!

Clarice liderando a “luta” distribuiu para todos pedaços de galhos dizendo que eram varinhas mágicas, de condão. As crianças pegaram suas varinhas e começaram a gritar, cada uma no seu tempo:

Crianças: Abracadabra, sim salabim, sai jacaré!

Vitoria: Gente, é só um jacaré de fantoche.

Mas as crianças nem deram ouvidos para o que Vitoria disse. Todos se juntaram e em coro ficaram fazendo magias com a varinha para o jacaré sumir.

Após um tempo correndo atrás do jacaré, algumas crianças voltaram dizendo que o jacaré era bonzinho e que só cheirava as pessoas. Com isso, o medo do jacaré acabou e foram brincar junto dele. (Caderno de Campo, 04/05/2015)

Esta cena ilustra um pouco do que apresento neste texto. A brincadeira possibilita interações, criação de regras, funções e novas lógicas. Desperta a imaginação, compreende o papel do outro e faz com que as crianças transitem entre a realidade e a fantasia. Relacionam-se o tempo todo, criam novos personagens, inventam novos mundos e a partir da narrativa de cada um, reinterpretam, se apropriam e criam novas histórias dentro de uma mesma brincadeira. Assim, as crianças vão produzindo cultura e se mostram ativas nos grupos em que se inserem (CORSARO, 2011).

Brincar é mais do que um direito

Sem dúvidas, é necessário pensar no brincar como dispositivo de análise para refletir sobre a educação nessa perspectiva lúdica, em que a criança seja capaz de pensar para muito além do seu próprio olhar, optando por caminhos que valorizem o coletivo, a partilha, a relação e os pontos de vista do outro. A criança, a partir do brincar livre, é encorajada a construir seus próprios valores e escolhas e se torna apta a percorrer criativamente o mundo.

Como valorizamos o lúdico no projeto pedagógico

A escola Eliezer Max acredita que o brincar é fundamental no cotidiano da Educação Infantil. Em nosso Projeto Pedagógico, alinhado à Base Nacional Comum Curricular, o brincar aparece como um dos Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimento específicos da Educação Infantil. Acreditamos que a participação das crianças nas brincadeiras deve ser valorizada estimulando sempre a sua criatividade, imaginação e novas experiências.

Julia Baumann, psicóloga da Educação Infantil do Eliezer Max

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Referências bibliográficas:
BORBA, M. A. A brincadeira como experiência de cultura na educação infantil. Revista criança do professor de educação infantil. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2007.
CORSARO, W. Sociologia da Infância. 2.ed. Porto Alegre: Artmed, 2011.
MOURA, M. T. A brincadeira como encontro de todas as artes. In: CORSINO, P.(org.) Educação infantil: cotidiano e práticas. Campinas, SP: autores Associados, 2009.
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975