28 de fevereiro de 2021
Leia aqui a matéria completa da Revista Época sobre a educação remota no Brasil, com participação de nossa diretora pedagógica, Thelma Polon, e nossa aluna Maria Papelbaum Micmacher.
REVISTA ÉPOCA
26 DE FEVEREIRO DE 2021
Os nós da educação remota no Brasil
Maria Papelbaum Micmacher, de 14 anos, de volta a sua escola privada, depois de um ano de aulas pela internet. “No início, achei que o on-line seria uma bagunça, mas deu certo”, disse ela. Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo
Era 13 de março de 2020, uma sexta-feira, quando estado e prefeitura determinaram o fechamento das escolas do Rio de Janeiro, a partir da segunda-feira seguinte, na tentativa de frear a ainda incipiente pandemia de Covid-19. A estudante Maria Papelbaum Micmacher, hoje com 14 anos, não deu muita importância a essa notícia. “Pensei que seriam só 15 dias em casa, como todo mundo”, contou Maria, hoje de volta à sala de aula do colégio Eliezer Max, no Rio de Janeiro, em que cursa o nono ano do ensino fundamental.
A quinzena que Maria esperava passar longe da escola se estendeu pelo ano todo. Como os milhões de estudantes brasileiros que por causa da crise sanitária viveram (ou ainda vivem) um dos mais longos períodos de afastamento escolar registrados no mundo, ela passou a acompanhar os professores por uma tela e a abrir o microfone para tirar dúvidas, em vez de levantar a mão.
A aula on-line foi uma adaptação delicada para alunos, pais e professores. Como seria previsível em um país marcado pela desigualdade, as dificuldades foram maiores para os mais pobres. De modo geral, escolas privadas saíram-se melhor no ensino pela internet do que as públicas. Para Maria, a aula remota foi compensadora. “No início, achei que o on-line seria uma bagunça, mas deu certo. Gostei muito dos projetos da escola”, disse ela. Seus professores incentivaram trabalhos que conectavam áreas diversas como história, geografia e ciências. Com cerca de 600 alunos, o colégio Eliezer Max é reconhecido como uma das escolas cariocas que melhor se adaptaram às novas circunstâncias. “Não começamos do zero”, explicou a diretora pedagógica, Thelma Polon. “Já usávamos a plataforma do Google, tínhamos treinado funcionários, compartilhávamos documentos com os alunos.”
Uma professora leciona no colégio Eliezer Max, no Rio. A maioria dos alunos da escola voltou ao ensino presencial em 2021, mas alguns deles ainda acompanham as lições de casa. Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo
De metodologia construtivista, como o Eliezer Max, a Escola Parque é outra instituição particular carioca que conseguiu manter o patamar de notas nas avaliações. O colégio, que tem cerca de 3 mil alunos, já tinha sua própria plataforma com materiais pedagógicos diversos. Com a quarentena, as atividades todas se transferiram para lá. “Temos aulas dirigidas, interativas, com atividades e exercícios”, explicou Patricia Lins e Silva, uma das diretoras da escola. O boca a boca sobre os bons resultados da Parque fez com que 60 alunos novos chegassem no meio da pandemia. O mesmo ocorreu no CEL Intercultural School, que tinha 1.700 matriculados e ganhou mais 225 no período exclusivamente remoto. A diretora pedagógica do CEL, May Chagas, contou que recebeu até alunos de duas das melhores escolas públicas cariocas, o Pedro II e o Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), nas quais o apagão do aprendizado perdurou o ano todo.
Muitas escolas e também universidades particulares já vinham adotando a tecnologia como aliada, o que facilitou a transição para o ensino à distância. E os alunos dessas instituições dispõem de computadores, tablets e celulares com internet, além de espaço próprio para realizar tarefas e alguma supervisão dos adultos.
Mesmo com todos os recursos à disposição, não há como comparar a resposta dos alunos ao ambiente digital e à escola física. No caso da menina Maria Clara, de 8 anos, que concluiu o processo de aprender a ler nas aulas on-line da Escola Parque, o entrave foi a timidez. “Virei professora. Minha filha não ficava sozinha no computador, não embarcava na aula, era uma tortura para ela”, relembrou a mãe, Renata Tobelem, atriz. Imagine-se agora a situação de crianças que não contam com recursos técnicos. Um levantamento da Fundação Getulio Vargas (FGV) a partir de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que, em 2019, 98,4% dos alunos de escolas privadas dispunham de algum dispositivo com internet, em comparação a 84,1% dos estudantes da rede pública.
“O aprendizado dos estudantes do quinto ao nono ano do ensino fundamental e do ensino médio pode ter sofrido um retrocesso desastroso. As perdas levariam os alunos à proficiência de quatro anos atrás em português e de três anos atrás em matemática”
Uma simulação de cenários futuros feita em outubro pela FGV, por encomenda da Fundação Lemann e com base em dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), do governo federal, mostra que o aprendizado dos estudantes do quinto ao nono ano do ensino fundamental e do ensino médio pode ter sofrido um retrocesso desastroso, anulando os lentos avanços do nível educacional brasileiro. As perdas, num cenário mais pessimista, que considera a hipótese de os estudantes terem aprendido virtualmente nada nas escolas públicas em 2020, levariam os alunos à proficiência de quatro anos atrás em língua portuguesa e de três anos atrás em matemática. Quem é socialmente vulnerável é, claro, mais penalizado: meninos do Norte e Nordeste, pardos, negros e indígenas, com mães que não concluíram o fundamental, estão no extremo que mais sofrerá a defasagem educacional; meninas brancas do Sul e Sudeste, com mães com pelo menos o ensino médio completo, no extremo que sofrerá menos.
À frente do estudo, André Portela, professor da FGV em São Paulo, lembrou que as simulações foram feitas prevendo o retorno das aulas presenciais em novembro, o que não aconteceu em boa parte das escolas brasileiras. A projeção fica ainda mais desoladora se levada em conta a evasão. Mais da metade dos brasileiros com mais de 25 anos não concluiu o ensino médio, segundo o IBGE. As principais causas do abandono do ensino são a necessidade de trabalhar e a falta de interesse no estudo, o que se aprofunda com as escolas fechadas. “Não dá para dizer ‘tudo bem não ter aula, recupera-se depois’. O que se perdeu em 2020 seria uma consolidação do que foi aprendido em 2019. A alfabetização aos 6 ou 7 anos é uma coisa; aos 8 ou 9, é muito mais difícil”, apontou Portela.
A atriz Renata Tobelem e Maria Clara, de 8 anos. A mãe acompanha a filha em suas lições pelo computador. Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo
Dados do IBGE de novembro, oito meses depois do início da pandemia no país, mostram que dos nossos 46,3 milhões de estudantes de 6 a 29 anos, 11,7% não tiveram qualquer atividade escolar à época. E o fato de a escola oferecer atividades on-line não significa que os alunos tenham conseguido realizá-las: 72,4% não participaram por não contarem com internet ou aparelhos para acessá-las, ou por não conseguirem se concentrar nas tarefas. Como se vê, já não basta prover alimentação, transporte e livros para assegurar o ensino. “O governo federal precisa criar um programa de inclusão digital para os alunos”, disse o ex-ministro da Educação José Henrique Paim.
O governo, no entanto, evadiu-se de qualquer responsabilidade pela educação on-line. “É o estado e o município que têm de cuidar disso”, afirmou o ministro da Educação, Milton Ribeiro, em entrevista ao Estado de S. Paulo em setembro de 2020. As prioridades parecem ser outras: no início deste mês, o presidente Jair Bolsonaro entregou ao Congresso o projeto de lei 2.401, que regulamenta no Brasil o chamado “homeschooling” — o ensino domiciliar, conduzido pelos pais. Se aprovado, o texto mudaria a legislação vigente, segundo a qual toda criança tem de estar na escola a partir dos 4 anos.
Especialistas em educação consideram o projeto tão inoportuno quanto irrelevante. “É um assunto de menos de 1% das famílias. Mais da metade das crianças no Brasil chega aos 8 anos analfabeta. Só 10% dos alunos terminam o ensino médio sabendo o mínimo. Nossa questão não tem de ser o homeschooling, e sim o no schooling’”, argumentou o diretor executivo da Fundação Lemann, Denis Mizne.
As escolas públicas respondem por 70% das matrículas no Brasil, e a maioria delas chegou ao fim do ano tendo oferecido algum conteúdo aos alunos. Mas não foi o suficiente. “Eram menos de duas horas por dia. Não deu para garantir o aprendizado. Foi só uma demão de tinta”, disse Mizne. A redução da carga horária na escola virtual foi aferida pelos pesquisadores Marcelo Neri e Manuel Camillo Osorio, da FGV Social, a partir de dados do IBGE. O tempo diário médio baixou de quatro horas e 15 minutos para duas horas e 18 minutos nas escolas públicas, e de quatro horas e meia para três horas e seis minutos nas particulares. Pela Lei de Diretrizes e Bases, a jornada mínima deve ser de quatro horas por dia.
“Nada substitui o olho no olho entre professor e aluno, a exposição ao conhecimento e a vivência de novas experiências de aprendizado na escola. Mas não há alternativa a não ser aferir o que foi ou não foi assimilado e seguir a partir daí”
Para recuperar o tempo perdido, é necessário traçar um diagnóstico preciso do que, de fato, os alunos absorveram. E torna-se imperativo priorizar o que realmente é essencial transmitir nas aulas. Mizne sugere que a orientação para estabelecer essas prioridades venha dos chamados Mapas de Foco, desenhados pelo Instituto Reúna. Eles elencam as competências essenciais para cada ano, de acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), para português, matemática, ciências da natureza e ciências humanas. O que não é imprescindível fica de fora.
Esse tipo de “enxugamento” está na mira da Secretaria de Educação da cidade do Rio, que iniciou o ano letivo à distância no dia 8, com videoaulas pela TV Escola, e está começando a volta ao presencial de forma escalonada. São 640 mil crianças e adolescentes. “Estamos trabalhando na reorganização e essencialização das habilidades”, disse Teresa Pontual, subsecretária de Educação.
Há receios e incertezas no retorno ao ambiente escolar. Simone Lima, professora do município do Rio há 26 anos e mãe de Eliza, de 12 anos, e de Eloah, de 15, não pretende mandar as filhas de volta às salas de aula tão cedo. Diante da lentidão na vacinação e dos persistentes níveis de contaminação, Simone teme que este seja mais um ano letivo perdido. “Minhas filhas ficaram desestimuladas em casa, como a maioria dos alunos”, relatou ela.
Fonte: PNAD Covid-19, realizada por telefone pelo IBGE no mês de novembro de 2020. Os números representam um universo de 46,3 milhões de estudantes brasileiros de 6 a 29 anos, do ensino fundamental à universidade. Foto: ÉPOCA
Não basta só tecnologia para obter bons resultados no ensino à distância. As escolas que já adotavam metodologias ativas, em que o estudante é o protagonista da marcha do aprendizado, estão se saindo melhor na pandemia, acreditam os educadores Andrea Ramal e João Alegria — ele, gerente-geral do Laboratório de Educação da Fundação Roberto Marinho.
“Aquelas que já adotavam a chamada ‘sala de aula invertida’, em que o aluno aprende a aprender, saíram na frente”, disse Andrea Ramal. Nessa dinâmica, o estudante é incentivado a buscar o conteúdo por si mesmo. João Alegria lamentou a baixa autonomia do estudante brasileiro, que não gerencia o próprio tempo e está acostumado com o professor que corrige exercícios e olha cadernos — hábitos que dificultam a educação remota. Alegria teme as consequências de longo prazo do ano perdido de 2020: “Tem lacunas (no ensino fundamental) que ficam adormecidas e você só vê no ensino médio”.
No ensino superior, o estrago também foi maior no setor público. Ainda que a faixa etária dos estudantes permita maior independência, o gargalo tecnológico pesou. Nas universidades federais, atividades mais regulares foram propostas só no segundo semestre, lembrou Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV. “O então ministro da Educação, Abraham Weintraub, preferiu a guerra ideológica à coordenação da política educacional”, criticou Costin.
Na educação básica, Costin destacou São Paulo, Maranhão e Paraná como estados que vêm adotando boas práticas para tentar reduzir os danos da pandemia. Num ranking feito pela FGV, que usa critérios como os meios usados para oferecer conteúdos — internet, TV ou rádio, por exemplo — e o grau de supervisão dos alunos, as unidades da federação mais bem colocadas foram a Paraíba, em primeiro lugar, seguida do Distrito Federal, de Minas Gerais e Paraná.
Uma aula da Escola Parque, no Rio, transmitida ao vivo. O conteúdo on-line fez tanto sucesso que 60 alunos novos chegaram no meio da pandemia. Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo
O estado do Rio, cujo secretário de Educação Pedro Fernandes foi preso em setembro acusado de corrupção, é citado por Claudia Costin como mau exemplo. Sucessor de Fernandes, o secretário Comte Bittencourt encontrou, ao assumir, uma realidade preocupante: apenas 30% dos cerca de 700 mil alunos mantinham alguma ligação com a escola.
Aos 17 anos, e já ansioso para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), Heitor Guthierrez manteve o vínculo com sua escola. Ele cursa o terceiro ano do ensino médio no Ciep Ezequiel Freire, no município fluminense de Itatiaia, instituição que tem histórico de excelência entre as escolas estaduais. Ainda que sem frequentar salas e pátios, o garoto não se sentiu tão longe do dia a dia escolar: “Foi nítido como a escola se preocupou com a gente. Isso foi importante para a relação professor-aluno”. Distinguida em 2017 com o Prêmio Gestão Escolar, do Conselho Nacional dos Secretários de Educação, a diretora do Ezequiel Freire, Angélica Silva e Souza, explicou como sua escola saiu da curva entre as públicas, mesmo na pandemia. “Eu tinha os 745 alunos no WhatsApp. Só quatro não chegaram ao fim do ano. Mantivemos contato diário, com aulas por chamadas de vídeo, motivadas, dinâmicas.” Entre os orgulhos da diretora, está um caminhoneiro da turma de Educação de Jovens e Adultos: “Ele pegava o material impresso e fazia as atividades na boleia”.
Num país que passa vergonha todo ano nas notas do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), a Covid-19 detonou uma crise ainda maior na educação. É consenso que nada substitui o olho no olho entre professor e aluno, a exposição ao conhecimento e a vivência de novas experiências de aprendizado que o estudante encontra (ou deveria encontrar) na ambiência escolar. Mas não há alternativa a não ser aferir o que foi ou não foi assimilado e seguir a partir daí. “A recomposição do conhecimento leva tempo, e só é possível tendo uma visão mais clara das lacunas que deverão ser trabalhadas. Uma geração escolar inteira está sendo afetada de um modo que ainda não percebemos na totalidade”, disse João Alegria.